Diretor de teatro, cenógrafo e figurinista, Márcio Meirelles criou em
1990 o Bando de Teatro Olodum – originalmente ligado ao tradicional grupo de música de Salvador, tornou-se independente a partir de 1994. Contudo, a aproximação com o teatro e a temática dos atores negros era um estímulo longínquo. Para Meirelles, o candomblé era como uma ópera. Aliás, não lhe entrava na cabeça como uma cultura tão forte no Brasil nunca tinha servido de base para o teatro. “Eu pensava muito so-bre o porquê de tudo isso nunca ter sido levado para o teatro. Comecei a entrar muito em crise com a dramaturgia ocidental.”
“Na gestão cultural é
A crise estética com o teatro clássico e o distanciamento que Meirelles
via entre a arte e a realidade fizeram com ele chegasse ao grupo Olodum.
preciso formular o discurso
O objetivo era reencontrar um teatro popular e criar com os atores uma
a partir da escuta.
nova metodologia de trabalho. “No princípio, as pessoas estranhavam
O problema do Brasil é
aquele jeito de interpretar. A imprensa tratou o Bando de Teatro por
muito tempo como um projeto social, mas ele nunca foi isso. Sempre foi
que temos pouquíssimos
um projeto estético, artístico e político. E cada vez mais político.”
dados sobre a cultura.
Meirelles revitalizou o Teatro Vila Velha com o trabalho no Bando, for-
Não só econômicos, mas
mado apenas por atores negros. É autor do texto e da encenação no tea-
numéricos mesmo.”
tro de Ó Pai, Ó, que revelou o ator Lázaro Ramos e depois se tornou filme financiado pela Globo Filmes. Dirigiu diversos espetáculos de música, de artistas como Tom Zé, Caetano Veloso, Margareth Menezes, entre ou-tros. Foi diretor do Teatro Castro Alves durante o governo de Waldir Pi-res (1987-1989). Em 2007, foi convidado pelo governador Jaques Wagner
cio Meir etário de Cultura da Bahia
para assumir a Secretaria da Cultura da Bahia. Fale um pouco das invenções da cena cultural da Bahia.
A Bahia é rica em invenções. O trio elétrico, por exemplo, acho que é o
primeiro software livre brasileiro (risos). Todo mundo faz, usa, replica e não existe direito autoral. Não existe patente dessa grande invenção que é o trio elétrico. Na verdade, o carnaval é uma grande invenção que se renova ano a ano. A história do carnaval é de invenções, de gestão e da indústria cultural. É essa negociação entre a produção artística, a invenção, a transgressão e a utilização das invenções para fins comerciais. A grande indústria cultural da Bahia é o carnaval. O carnaval de Salvador movimenta R$ 500 milhões por ano. Somente 10% disso é do governo, do estado, ou da prefeitura, o resto é investimento privado. São números que a gente não sabe muito bem,
Entrevista realizada por Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn no dia
pois é claro que os grandes blocos, trios e camarotes não abrem detalhes de
Conte um pouco da relação da área cultural com o carlismo na Bahia.
eu fui até a SP-Arte e fiquei sonhando em poder ter alguma coisa semelhante
A Bahia, entre 1945 a 1964, viveu um período incrível de desenvolvimento
na Bahia. Assim, os artistas plásticos não precisariam sair com os quadros na
econômico, cultural e intelectual. Foi a época da descoberta do petróleo. Ha-
mão batalhando. Não teríamos apenas as instituições que fazem política só de
via uma série de cabeças pensando juntas. Foi a última vez que se pensou, de
mercado ou de aquisição. Precisamos de políticas convergentes. Aliás, a insti-
fato, a cidade de Salvador. Havia um plano diretor, construíram-se as vias dos
tucionalização da política cultural no Brasil veio de fato com o Gilberto Gil – o
vales, muita coisa. A Lina Bo Bardi foi para lá, o Edgar Santos criou as esco-
pensamento da cultura como questão de Estado, como direito básico do cida-
las de arte. O Seminário de Música reuniu Hans Joachim Koellreutter, Walter
dão, e como distinção entre os conceitos de cultura, de arte, de produto e de
Smetak, Ernest Widmer. O Martim Gonçalves também foi para lá e criou a
indústria cultural. São coisas distintas e convergentes, é quase um ecossiste-
escola de teatro. A dançarina Yanka Rudzka enlouqueceu com a produção
ma que trabalha junto. Um retroalimenta o outro, não pode separar uma coisa
do movimento na Bahia, trouxe toda história dela de movimento moderno
da outra. Você não pode anular o mercado como não pode anular o papel do
e fundiu isso com as tradições coreográficas baianas. O poeta Antonio Risé-
Estado, como não pode anular a produção cultural diversa e plural que existe
rio conta isso muito bem [momento histórico descrito no livro Avant-Garde na
e que alimenta tudo isso. Mas falei tudo isso para explicar o que aconteceu
Bahia, de 1995]. Foi um momento que gerou uma referência para o Brasil e
na Bahia (risos). Foram anos e anos da mesma orientação e com as rédeas
para o mundo. Tropicália, Glauber Rocha, tudo isso veio desse caldo de pen-
na mesma mão. Se o Estado define todas as regras da produção cultural e da
samento que borbulhava. Em 1964, quando houve o golpe militar, isso foi de-
relação com os artistas, ele também apazigua. É um jeito de dizer: “Vem para
sarrumado. A ditadura começou a tomar para si o mérito do desenvolvimen-
o meu lado, mas fique quieto”. Os artistas passam a representar coisas com as
to, como se ele tivesse surgido a partir do golpe. Mas isso não é a realidade.
quais eles nem concordam, mas a regra daquele mercado – dotado pelo Es-
Houve uma interrupção. E essa política e esse grupo político e econômico que
tado – é essa. Acontece uma inversão dos papéis. E, na verdade, muitos usam
foi se consolidando a partir de 1964 ficou no poder. Houve alguns momentos
a falsa acusação de que o governo de esquerda faz uma política de direcio-
de oxigenação, como no governo do Roberto Santos, que, embora tenha sido
namento na cultura. É exatamente o contrário. Se você abre o espaço, se faz
colocado pela ditadura, tinha outro pensamento. Era filho de Edgar Santos, ti-
Pontos de Cultura, se democratiza o acesso aos recursos públicos, então você
nha uma história ali. Além do Roberto Santos, também teve o governo Waldir
começa a ver no Brasil um caldo efervescente. Isso começa a se manifestar.
Pires. Mas este foi um caos, uma loucura. Ele estava cercado. Era impossível,
O resultado desse período da ditadura até 2007 na Bahia foi a fragilidade e a
ingovernável, não era possível um governo de esquerda naquele momento e
informalidade da produção cultural. Não existe ainda uma indústria cultural
lugar. Foi uma votação expressiva e uma vitória incrível de Waldir Pires, mas
forte no estado, exceto o carnaval e o axé.
depois ele não conseguiu governar. Até que em 2007 entrou o Jacques Wagner com um governo de esquerda e aliado ao governo federal. Conseguiu força
Falar da Bahia é passar pela arte de vanguarda e pela arte popular. Como
para fazer essa transição. Aquela cultura forjada e manipulada pela ditadu-
criar uma política que permita que essas duas áreas sigam seus cami-
ra havia continuado até 2007. Foram 43 anos do mesmo sistema, do mesmo
nhos? Como diferenciar ou como dar chances iguais para essas culturas?
pensamento, do mesmo direcionamento político. Houve a eleição de alguns
O governo estadual e a Secretaria de Cultura precisam lidar com a cultura
ícones, nomes e gêneros baianos como sinônimos de cultura. Diante da vasta
de duas formas. A primeira é como direito básico, como um serviço. Deve dis-
cultura baiana, fez-se um recorte que foi incentivado e divulgado à exaustão.
ponibilizar acesso à cultura de uma maneira geral: livros, espetáculos, toda
A indústria do axé, por exemplo, se beneficiou muito com isso, evidentemen-
a produção cultural. A segunda é fomentar a produção. É como se a mesma
te. Virou quase uma monocultura. Aliás, nada contra, acho importantíssimo.
secretaria tivesse os papéis de educação, saúde, comércio e agricultura. São
Mas sou a favor da diversidade e ela não existiu. Não houve fomento à diversi-
esses dois lados. Evidentemente, cada setor merece um olhar especial e de-
dade, nem fortalecimento da produção independente, da sociedade civil e das
manda ferramentas especiais. Se você faz um edital, por exemplo, o artista do
organizações. A produção cultural ficou completamente frágil, quase infantil,
terno de reis do interior baiano terá dificuldade de concorrer e dialogar com
sobretudo na informalidade para tratar a gestão e o mercado. Recentemente,
o Estado. Então, nesse caso, precisamos pensar programas como o modelo
da agricultura familiar e pegar toda essa cultura popular. Ao mesmo tempo, a
negros. Agora, sim. Não precisavam nem ser atores, nem ter currículo. Vieram
intervenção do Estado nesse tipo de produção deve ser muito delicada. O que
vários atores de teatro, uma rede de teatro periférica, subterrânea e incrível.
vemos agora na Bahia é uma produção muito conduzida pelo turismo. An-
Havia teatro amador, de bairro, do movimento negro e da igreja. Comecei a
tes de 2007, tínhamos uma Secretaria de Cultura e Turismo, o que aproximou
ver esse universo invisível que era o teatro da periferia. E eles traziam uma
muito as lógicas desses setores. Um estava muito a serviço do outro. Contu-
forma de representar o mundo muito interessante. Foi quando preferi abrir
do, é complicado lidar assim com mestres e produtores culturais, sobretudo a
mão do que eu sabia e do que eu fazia para começar a construir uma nova
metodologia com eles. Foi um processo de troca. No princípio, as pessoas es-tranhavam aquele jeito de interpretar e começaram a achar que eles eram os
Certa vez você disse o seguinte: “Minha tese é que os centros de can-
personagens. A imprensa tratou o Bando de Teatro por muito tempo como um
domblé eram como óperas. Tinham música, dança e narrativas de sa-
projeto social, mas ele nunca foi isso. Sempre foi um projeto estético, artístico
gas e de heróis. Se tanto as tragédias gregas quanto o teatro japonês
e político. E cada vez mais político. Mais e mais gente foi entendendo que fa-
têm origem nesses mitos heroicos, por que os rituais afro-brasileiros
zer teatro é isso: uma assembleia política, um debate político o tempo inteiro.
ainda não tinham se tornado teatro?” Fale sobre isso e sobre o que é o
E eu venho disso. Eu comecei a fazer teatro na universidade em 1972, duran-
Bando de Teatro Olodum.
te a ditadura. Fazia teatro como uma arma de luta. E a gente foi insistindo.
Essa tese é de 2003, quando fiz uma peça no Rio e um alabê, que é o ogã que
Quando Caetano Veloso reconheceu o Bando, a imprensa mudou de opinião.
conhece a música e os ritmos do candomblé, trabalhou com a gente. A peça que eu dirigi se chamava Candaces, encenada pela Cia dos Comuns. Quando
Fale um pouco das peças e das pessoas do Bando de Teatro Olodum.
o orixá é incorporado pelo filho de santo e quando ele aparece na festa públi-
Começamos a fazer oficinas e a construir um método. Esse método partia
ca, ele assume determinada característica. Não existe um único Xangô, são
da célula do teatro, que é o personagem. A gente ia para a rua observar as
vários: o da guerra, o disso, o daquilo. São várias faces e momentos do mesmo
pessoas para fazer o personagem. Conversávamos com as pessoas para pegar
herói. Quando esse Xangô chega, a mãe de santo e o alabê sabem qual música
o jeito de falar, o jeito de se mover, mas isso não era pesquisa acadêmica, era
vai começar. Todo mundo sabe que aquilo é uma sequência. A partir daquela
um corpo a corpo. Começava com um imitar e, de repente, esses personagens
canção, uma sequência inteira conta a história daquele herói. E isso é canta-
ganhavam caráter coletivo. Não eram personagens psicológicos, não tinham
do por um coro, tocado por uma orquestra e dançado por todos. É a mesma
dramas pessoais, eram dramas e tragédias de uma comunidade inteira. E a
estrutura de uma ópera oriental e do Teatro No. E eu pensava muito sobre o
gente construiu nossa primeira peça que foi EssaÉ a Nossa Praia. Esses per-
porquê de tudo isso nunca ter sido levado para o teatro. Nesse momento, co-
sonagens tinham essa característica de máscara social. A tradição do teatro
mecei a entrar muito em crise com a dramaturgia ocidental. Via a distância
popular nos ensinava que esses personagens, esses arlequins, esses vários ti-
que havia dessas coisas. O meu grupo de teatro sempre teve um público, não
pos de João Grilo aparecem em várias histórias com uma função. A televisão,
posso me queixar disso, mas eu sentia que tinha uma distância entre o palco
contudo, deturpou isso e faz o mesmo personagem sempre na mesma situ-
e a vida real. Havia muitos negros, mas eles não estavam no palco. Não tinha
ação. É a versão simplificada do teatro popular. Esse personagem do teatro
atores suficientes para a quantidade de negros da Bahia. Resolvi fazer um pro-
popular aparece em várias situações diferentes e reage de formas diversas,
jeto de teatro para prefeitura e acabei por me aproximar dessa questão, do
mas com aquela mesma função: ou representa a classe operária, ou a elite,
Ilê Aiyê, do Olodum. Quando acabou o projeto teatro, eu e João Jorge, do Olo-
ou o intelectual, seja lá o que for. Ele representa alguma coisa e essa coisa se
dum, conversamos. Ele queria trabalhar com outras linguagens e eu queria
move de forma diferente dependendo da situação. Há uma linha de conduta
me associar a alguma instituição ou a alguma casa de candomblé ou de afoxé.
que é reconhecida pela audiência. Depois, fizemos Ó Pai, Ó, a segunda peça
Aí nos concentramos no Olodum. Começamos a fazer oficinas e a chamar
com esses personagens. A gente ficou trabalhando com esses personagens
atores que precisavam ter um compromisso com a cultura negra. Era o início
por muito tempo, não só no Essa É a Nossa Praia. A primeira peça foi o final
do Bando de Teatro Olodum. No começo, os interessados não precisavam ser
de oficina e foi um sucesso. A gente ficou quatro anos em cartaz com a peça
e gerou a Trilogia do Pelô: Essa É a Nossa Praia, Ó Pai, Ó e Bai-bai, Pelô. Ao
esses temas: “O que é ser negro no Brasil? Existe racismo no Brasil?”. Sempre
mesmo tempo dessas peças, acontecia a reforma no Pelourinho. Na primeira
mostramos as duas coisas. É um painel de vários personagens que a gente
peça, ainda não tinha começado a reforma, mas em Ó Pai, Ó ela já estava em
reconhece. O negro militante, aquele que é quase branco, enfim, mostramos
andamento. As pessoas já estavam sendo botadas para fora. A terceira peça,
várias faces, vários olhares sobre essas questões. E foi um salto. Na época da
Bai-bai, Pelô, foi exatamente sobre a reforma, sobre as pessoas que saíram, as
montagem, soubemos de uma notícia que o público baiano de teatro tinha so-
que ficaram, o que foi necessário negociar, como a cultura e como as relações
mente 1% de negros. Era uma aberração porque 80% da população era negra.
se transformaram a partir da reforma do Pelourinho. Ao mesmo tempo, nós
E sabíamos por meio da revista Raça que não era por falta de recursos. Havia
pesquisávamos as questões do candomblé, que resultou na encenação de O
uma classe média consumidora. Então, por que essa classe média não vai ao
Novo Mundo. Também trabalhamos com a dramaturgia clássica, que originou
teatro? Fizemos, então, um golpe de marketing como política afirmativa. No
a montagem de Woyzeck [peça de autoria do alemão Georg Büchner]. Até que,
momento em que se começava a discutir o sistema de cotas, anunciamos que
finalmente, fizemos A Medeamaterial [texto de Heiner Müller], em 1994. Foi
cobraríamos meia-entrada para negros. Isso foi um escândalo nacional (ri-
o primeiro grande salto do grupo. Trabalhamos com Vera Holtz, Guilherme
sos). Boris Casoy dizendo que era uma vergonha, que era racismo ao contrário
Leme, Heiner Goebbels e Neguinho do Samba. Na trilha, o Goebbels compôs
e por aí vai. O Ministério Público pressionou a gente a mudar de ideia, porque
um jazz, que era o colonizador, e o Neguinho do Samba fazia o ritmo do povo.
o promotor lá não queria que o primeiro processo contra racismo fosse contra
nós. E a gente fez um grande debate sobre a questão das cotas, sobre a política afirmativa e todos na Bahia assumiram que eram negros, então todos podiam
E nessa época o grupo Olodum já era um sucesso brasileiro?
Sim. Quando a gente começou o Olodum já era um sucesso, lá em 1990.
Ainda não havia tido Michael Jackson e essas coisas, mas já era sucesso. Mas a
E quem teve essa ideia? Medeamaterial foi uma grande virada, finalmente se reconheceu que o Bando
Eu (risos). Foi um grande debate. Percebemos que a plateia negra que fre-
era um grupo de teatro, que eram atores. Foi a inauguração do Teatro Castro
quentava era toda de amigos, convidados, parentes, mas não era um público
Alves, era uma grande ópera, com um orçamento de grande produção, na épo-
pagante. E, a partir de Cabaré da Rrrrraça, os negros passaram a ser 60% da
ca. E a gente viajou, veio para São Paulo, ficamos um mês aqui. A peça levan-
plateia do Bando. Para a gente, isso é um grande mérito. No último espetáculo
tou muito debate e gerou reconhecimento para o trabalho do grupo. E Caeta-
que eu dirigi com eles, que foi Sonho de Uma Noite de Verão, a estreia tinha
no Veloso tinha visto Ó Pai, Ó e queria fazer o filme. Em 1995, nós assinamos o
uma plateia quase toda negra para ver Shakespeare.
contrato para ele fazer a adaptação e o roteiro. Ele, Hermano Vianna e Sérgio Mekler. Eles fizeram e mandaram para a gente. Depois, tiveram um problema
Só para aprofundar mais essa questão, havia uma exclusão pelo preço
com a produção, porque um grupo norte-americano queria se meter demais
do ingresso? Em segundo lugar, havia exclusão porque os aparelhos
no roteiro. Enfim, acabou o projeto. Isso se enrolou. Mas aí o Lázaro Ramos
culturais estavam concentrados em lugares de alta renda?
virou o Lázaro Ramos que é hoje e a Virgínia Rodrigues virou a Virgínia Rodri-
A exclusão não era pelo preço do ingresso. A meia-entrada era só uma pro-
gues (risos). O Lázaro quis retomar o projeto. Procurou a Monique Gardem-
vocação. Sobre os aparelhos culturais, em Salvador eles estão muito concen-
berg, que era a pessoa para quem o Caetano tinha passado o bastão depois da
trados no centro da cidade. Não é só lugar de alta renda, porque os ricos estão
confusão. O Lázaro conversou com ela e se juntaram para fazer o filme. Tam-
na orla e em outros lugares. O que percebíamos é que havia um degrau muito
bém vale registrar outra virada do Bando de Teatro em 1997. Foi a peça Cabaré
grande. O mesmo degrau que eu sentia entre o palco e a plateia quando fazia
da Rrrrraça. Na época, foi lançada a revista Raça, que mostrou uma classe
dramaturgia ocidental e encenava clássicos. A gente vai para o teatro para se
média negra consumidora forte. Começamos a trabalhar sobre isso, sobre o
reconhecer, para se ver, para se discutir, para refletir sobre nós mesmos. O que
negro como consumidor e como objeto de consumo. Esse era meio que o foco
fazemos ali quando não nos vemos no palco? Não estão ali nossos arautos,
da peça. É um espetáculo de cabaré, de revista, um musical e que trabalha
nosso orador que vai falar sobre as nossas questões. Se ele é provocado para
ir, porque há uma afirmação de que vamos falar sobre ele, isso o impulsiona a
Como você esteve ligado com a preservação dos acervos particulares
ver o teatro. Quando eu falo que tinha uma plateia negra para ver Shakespe-
dos baianos Jorge Amado e Dorival Caymmi?
are, não é que o negro não goste de Shakespeare, mas, aparentemente, suas
Essa questão dos acervos é uma coisa complicada. É um problema não só
peças são montadas de forma que não haja nenhuma relação com o dia a dia
na Bahia, mas em todo o país. Existe o acervo do Hélio Oiticica, que foi de-
de uma plateia negra de classe média ou mais pobre. Mas quando eles vão ver
tonador de todo um pensamento novo sobre isso. Mas, no geral, os acervos
este Shakespeare é porque eles sabem que este grupo faz Shakespeare de uma
dos museus é uma questão que vamos trabalhando aos poucos, buscando
políticas para eles. Esbarramos antes de tudo na propriedade. Apesar de ser
um patrimônio público cultural, estes acervos são particulares, pertencem
Em sua visão, isso mudou o teatro? Influenciou outros lugares e outras
às famílias dos herdeiros, que às vezes não entendem da mesma forma este
montagens dentro e fora de Salvador?
acervo. Quando há mais de um herdeiro e não há uma liderança, isto é mais
Nós percebemos o ar do tempo e saímos juntos. Já havia um movimento
complicado ainda. O que a gente sente é isso. Os acervos particulares ficam
grande de orgulho negro desde os anos 60, que vem com o Ylê, com o Olo-
parados diante das necessidades imediatas dos herdeiros, que querem vender
dum, com a música principalmente, com o carnaval na Bahia se afirmando,
com uma nova estética, com um novo reconhecimento. O negro estava na universidade, fazia mestrado, discutia suas próprias questões, revia sua pró-
É preciso pensar na instabilidade do poder público como mantenedor
pria história. É um movimento que vem desde os anos 60 no Brasil. O Bando
desses acervos, não é?
de Teatro Olodum surgiu junto com isso. Não seria possível o Bando de Teatro
Claro. É também uma questão a se pensar, porque muitas vezes vários con-
Olodum se toda essa luta do negro não estivesse em marcha. Mas, eviden-
ceitos estão misturados. O público e o privado se confundem. O Estado assume
temente, o Bando de Teatro se tornou uma referência para os jovens negros
um acervo que é privado como público, por exemplo. Tudo isso fica confuso.
da periferia e do centro. Agora, surgiram vários grupos de atores negros, há
Quando se define que o Estado pode cuidar do acervo – que é governamental,
um núcleo de atores negros dentro da universidade, da escola de teatro. Já
é propriedade do Estado, seja porque ele comprou ou recebeu por doação –,
fizemos três fóruns de performance negra e fomos mapeando os grupos de
ele tem responsabilidade sobre isso. E isso pode ser cobrado do Estado mes-
teatro e dança negros no Brasil. No primeiro, tinham 51 grupos. No segundo
mo que haja uma alternância de gestão. Se o acervo é privado, o Estado pode
e no terceiro, muito mais. Realmente há um movimento. Em São Paulo, por
apoiar, mas não pode fazer tudo. Então, o que criamos diante dessa situação?
Várias instituições tinham acervos materiais e imateriais preciosos, como a Fundação Casa de Jorge Amado, que tem todo acervo documental dele. Todo
Este público começou a se identificar e se ver capaz de estar em uma
o acervo de Jorge Amado, apesar de ser da família, é gerido por esta fundação.
sala de teatro, começou a frequentar mais os aparelhos culturais. Isso
É o mesmo caso do Museu Carlos Costa Pinto, que tem um acervo riquíssimo
aumentou o índice de público negro no teatro?
em prata e objetos de arte, e do Teatro Vila Velha, que tem todo um acervo
Não tenho dados científicos, mas no Teatro Vila Velha, onde o Bando é
de produções, de grupos, que trabalharam, de repertório de teatro, que tam-
o grupo residente, existe uma plateia negra muito grande. Mesmo quando
bém é importante além do acervo documental sobre 50 anos de teatro baia-
não são espetáculos do Bando. E isto parte também de uma política de for-
no. Havia uma relação direta dessas instituições com a Secretaria de Cultura
mação de plateia do próprio teatro. Mas, respondendo à sua pergunta, eu
da Bahia, mas o Tribunal de Contas do Estado já vinha sinalizando que isso
acredito que haja, sim, mais negros no teatro baiano agora. Como eu falei,
não podia ser feito desta maneira. O Estado não podia apoiar a manutenção
existem vários grupos negros com estéticas diferentes do Bando. Eles não
dessas entidades. Poderia apoiar talvez a manutenção do acervo, mas não da
são aparentados no sentido estético, mas no sentido ético, ideológico e po-
entidade. E isso sempre foi muito confuso, porque o governo estadual apoiava
lítico. Isso tudo, evidentemente, trouxe uma plateia negra maior, mas não
a existência de algumas entidades e de outras, não. Criamos, portanto, um
programa de apoio a ações continuadas de produções culturais. Estabelece-
mos metas, formas de acompanhamento, uma pontuação que gera níveis de
existam outras fontes de financiamento e sobrevivência. Os ternos de reis, por
apoio. Isso depende do valor do acervo, da idade da instituição e das metas de
exemplo, são tradições complexas. É uma tradição familiar que não tem uma
trabalho propostas. Os acordos são feitos por dois anos e renováveis por mais
estrutura, não são pessoas jurídicas. Eles vêm da tradição de grupos, familia-
dois. Todas as instituições que eram apoiadas pelo estado foram enquadra-
res ou de bairros. E essa manifestação está sendo esmagada nas cidades que
das neste novo programa. A partir de agora, vamos fazer editais anuais para
vão crescendo. Já nas pequenas cidades, os ternos de reis vão se deteriorando
novas instituições serem apoiadas. Isso garante, por exemplo, a uma família
por outros motivos, sobretudo por uma questão cultural mesmo: os jovens não
que quer manter o acervo que crie suas própria instituição e aí dialogue com o
se interessam mais por aquilo. Estamos buscando fomentar vários segmentos.
estado. O apoio para manutenção do acervo só é feito a partir de um plano de
Com as bandas de música filarmônica a gente fez o cadastramento de todas, viu
divulgação. O importante é como este acervo pode contribuir com a socieda-
a necessidade de cada uma e criou um programa para atendê-las. Da mesma
de, como ele será visto e se vai mobilizar atividades a partir da obra do autor.
forma, com as fanfarras e os grupos de teatro de rua. Vamos cadastrando esses setores e nos informando sobre as necessidades. E o outro lado da história, que são os acervos vivos em eterna muta- ção? Toda essa diversidade de artes populares e tradicionais. Como A gestão cultural é, portanto, ouvir? manter isso sem engessar o processo criativo do povo?
Primeiro ouvir e depois falar. Mas é preciso formular o discurso a partir da es-
É outro desafio. São naturezas variadas. No carnaval, por exemplo, temos
cuta. O problema do Brasil é que temos pouquíssimos dados sobre a cultura. Não
um programa chamado Ouro Negro, composto por um setor enorme dos blo-
só dados econômicos, mas dados numéricos mesmo. Não sabíamos até pouco
cos de matriz africana. São os blocos afros, os afoxés, os grupos de percussão,
tempo quantos ternos de reis e quantos teatros tínhamos na Bahia. A gente não
eles possuem uma herança africana fortíssima. Eles são a base do carnaval e a
sabia quanto o carnaval da Bahia consumia ou quanto circulava de dinheiro por
matéria prima para o carnaval industrial. Mas eles não recebem royalties dos
lá. Fizemos a primeira pesquisa em 2007. Foi algo em torno de R$ 500 milhões.
ritmos, nem direitos autorais comunitários, porque não existe essa legislação
Agora, sabemos que só 16% da população de Salvador brinca o carnaval.
no Brasil. O que fizemos, então? Recortamos o carnaval e fomos apoiar o seg-mento de matriz africana. Paralelamente ao apoio financeiro para eles saírem
Quais são os erros e os acertos da sua gestão na Secretaria de Cultura?
no carnaval, começamos a trabalhar qualificação de gestão e a fazer oficinas
Não consigo ver como erros e acertos. Vejo como coisas que precisam ser
de média e de longa duração, criando uma espécie de associação. O carnaval
feitas. Primeiro é a questão do entendimento da cultura, do que é a cultura
ficou muito mais fortalecido, vivo e vibrante, e a gestão se reflete também
e qual é a diferença entre cultura, arte, produto cultural, produto industrial,
no desfile. E a gente quer começar a trabalhar a questão estética também.
indústria cultural – coisas que eu falei no princípio da nossa conversa. É pre-
Queremos fortalecer isso, que foi se perdendo e se misturando. É um processo
ciso entender como se presta o serviço da cultura pelo Estado e como se fo-
incontrolável – aliás, nem deve se tentar controlar –, mas os afoxés precisam
menta a cultura, como se injeta recursos e como se faz um mercado apoiar
saber que têm história. Eles podem fazer esteticamente o que quiserem, mas
de alguma forma as raízes. Não deixar existir só o modelo do consumo, mas
é possível retroalimentá-los. Pretendemos, portanto, fazer oficinas de estética
como fazer o diálogo entre mercado e tradição. Esse é o papel do Estado: ar-
para falar sobre a história e a evolução deste segmento.
ticular e manter o equilíbrio entre indústria cultural e produção de cultura, além do impacto disso como fator de identidade e de inclusão. Para chegar a
Toda essa mistura estética também pode ter motivos econômicos.
isso, temos muita coisa para fazer ainda. Partimos de um cenário em que 90%
Como se eles pensassem: “Ou a gente muda ou a gente não vai sobrevi-
do orçamento ficava na capital e na região metropolitana. Mas tínhamos 417
ver”. É preciso libertar os grupos culturais dessa dependência de mu-
municípios em uma área de 570 mil quilômetros quadrados. A Bahia é maior
dança, não é?
que a França. Como se chega a todos esses lugares? Começamos a trabalhar
Há certa dependência do Estado também. Eles não podem existir somen-
com um sistema. O governo da Bahia assumiu como divisão de unidade de
te porque o Estado dá a manutenção. É preciso todo um trabalho para que
planejamento os territórios de identidade definidos pelo Ministério de Desen-
volvimento Agrário (MDA). Para a gente, isso foi genial. É uma estrutura entre
baiano litorâneo, cuja imagem sempre esteve vinculada ao recôncavo. Temos
o município e o estado, que são os territórios de identidade, logo têm tudo a
muitas identidades na Bahia, muitas histórias e culturas. Durante muito tem-
ver com cultura. Juntamo-nos a esse esforço de criação de um plano de desen-
po, o baiano ficou sendo essa coisa de personagens de Jorge Amado, Dorival
volvimento que era feito no MDA. Criamos um fórum de redes municipais e
Caymmi, Pierre Vergê e Carybé – os quatro cavalheiros que construíram a
estabelecemos um representante de cada território. São 26 territórios, 26 re-
identidade da Bahia. O estado, evidentemente, é reconhecido por essas obras,
presentantes. Eles se articulam com os dirigentes municipais e com os Pontos
mas, como tudo na vida, isso traz um lado bom e um lado ruim. O lado bom é
de Cultura. Começamos a trabalhar em sistemas e em rede. Quando você faz
que isso é internacional, que a Bahia é referência. A construção desta imagem
o cadastramento, fica claro que todo mundo está em determinado progra-
criou uma Bahia desejável, que todo mundo quer conhecer. Por outro lado, é
ma. Assim, eles se comunicam e trocam experiências. Isso gera entendimento
também uma coisa atávica, porque é uma identidade antiga, uma identidade
do fomento e do que se produz dentro da economia. Isso é importante como
que admite o coronel, que admite o racismo, a discriminação, a desigualdade
identidade e como fator de inclusão. No caso dos blocos afro, por exemplo,
social. O rótulo de que o pobre é tão bom e tão alegre que constroi muitas
eles sabem a importância que possuem para a comunidade, mas percebem
coisas e puxa a rede. E não tem mais “puxação” de rede nenhuma, entendeu?
agora a questão econômica ligada a isso. Há, portanto, um amadurecimento.
É difícil lidar com isso. O que a gente quer é construir esta Bahia plural. Toda
Por outro lado, é muito complicado criar ferramentas para tudo isso. O fundo
a política do audiovisual, por exemplo, está sendo fortalecida. Há 20 anos, por
de cultura é, basicamente, o orçamento que temos para o fomento de toda a
exemplo, ficamos sem produzir um longa metragem na Bahia. Em 2010, cinco
produção da sociedade. E isso é muito pouco. São R$ 25 milhões por ano para
estão previstos. São longas-metragens que mostram a cara da Bahia por baia-
dividir em editais para todos os municípios. E isso para todos os setores e
nos. Também estamos incentivando uma rede pública de televisões a partir
para os vários elos da cadeia: criação, produção, circulação, formação. Vários
da TVE e canais universitários e educativos. Existe ainda o fomento à produ-
editais, inclusive, contemplam mais de um elo das cadeias produtivas do au-
ção local também para que cada território tenha sua produção audiovisual.
diovisual, da literatura, da leitura, das artes cênicas, da música etc. Também
E a TVE seja o canal de veiculação. Queremos vários territórios exatamente
criamos um programa de apoio a instituições. Acho que temos de transmi-
para ter essa visão plural. Fizemos um edital que previu 26 documentários
grar, parar de apoiar somente a produção direta e passar a apoiar as entidades
para cada região baiana. A contrapartida da produtora vencedora foi gerar
e as estruturas. Sejam grupos de teatro, atividades de matriz africana, bandas
imagens de todos os municípios daquele território. E a gente vai ter um do-
de música, museus, bibliotecas. E, por meio dessas instituições, construir po-
cumentário e um “minidoc” de cada município. Têm 417 “minidocs” e 26 do-
líticas de produção e circulação. Também existe a relação disso tudo com o
cumentários para a TVE mostrar essa cara baiana. Esse é o grande desafio:
mercado. Minha visita recente à SP-Arte foi uma longa reflexão sobre política
irrigar a cultura e a produção dos baianos.
de aquisição, sobre o papel do Estado no mercado. Por que um artista deve ou não estar no museu? Qual o papel das galerias, dos marchands, qual o papel do mercado e do Estado? Isto não é muito claro para a sociedade. A política de aquisição e o mercado de arte se davam pelos museus, mas não pode ser só isso. Por isso, acho que falta muito para chegar a uma produção cultural real-mente forte, mas já demos muitos passos. Eu não saberia dizer qual é o acerto e qual foi o erro da gestão. Estou preocupado ainda em fazer, fazer e fazer.
A partir da reflexão cultural, como você define o baiano?
São muitos baianos. O baiano é plural. Não tem um baiano apenas. Nós
temos pelo menos três ecossistemas bem claros. O baiano é às vezes muito
mineiro, às vezes pernambucano, goiano ou mato-grossense. Além, claro, do
http://www.producaocultural.org.br/slider/marcio-meirelles/
ELS TOPÒNIMS DEL CADASTRE DE RÚSTICA DE 1964 Plàcid Pérez Pastor / Lluc Coll Bernat*Es coneix amb el nom de Cadastre un seguit de documents que tenen per objectiuel control de la riquesa agrícola per part de l’Estat, amb finalitats fiscals. Consisteix en unconjunt de plànols on es localitzen totes les propietats agrícoles d’un municipi, que escomplementen amb una relació indi
Beerenleitner lacht los. Es zerreißt ihn fast. Er muss sich schnäuzen. Filipowicz hat Humor. Das muss man ihm lassen. „Bildung“, erklärt er, „ist so wie Ihre Krawattennadel: schön, Wien, Innere Stadt. Oktober 2006 Redakteur Beerenleitner und Filipowicz sitzen im Café Bräu-nerhof und rühren beide in einer Mokkatasse. Vor 37 Jahren, 1974, hatte Beerenleitner diesen Adam Filipo-