A mulher no quarto

A Mulher no Quarto
A questão é: Será ele capaz de fazer aquilo? Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por causado horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos. Masestas são pílulas diferentes. cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXODARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Eraum remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algopara passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados emfileiras como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental.
SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de enfiarno reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Nãoexiste dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS.
FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. Épossível reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios.
Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas porserem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamarde pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g - Darvon 100g. Seria ela capazde mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua afuncionar. A geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e,depois, pára, a intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar ashoras e meias-horas. Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e eledesmontar a casa. Ela se foi, mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Centralde Maine, em Lewiston. Quarto 312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte queela nem mais conseguia ir à cozinha fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, elachorava sem perceber.
O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul dacompanhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, combarulho ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hojefizeram-lhe uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas éassim que se pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar umaagulha no pescoço e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algosemelhante a enfiar um alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando aagulha atingir o centro da dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quandoo sinal atingir a ponta, o centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho deTV. Então, o câncer na barriga deixará de incomodá-la tanto.
A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositóriosderretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton,chamado The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas.
Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar.
A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do hospital etem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas feirasdo interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes destavisita.
As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele refleteque a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente quemarrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim. A idéiao faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo.
Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no qualele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalaraqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com ladoscromados e rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala decirurgia quando estão prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grandeobjeto circular cuja função ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste verticalna qual estão pendurados dois vidros, como uma pintura de seios feita por SalvadorDali. Num dos corredores fica a sala das enfermeiras e risos lubrificados a café chegamaté ele.
Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possaencontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará.
Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um pacientetoca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos docorredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamastambém fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bemcomo golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, sãochamados "johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitosnos homens porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dosjoelhos. Os homens sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. Asmulheres preferem chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um pare as chama de "mulas".
Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos Mortos-Vivos".
Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros demaionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Algunsusam bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mastambém possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugarnenhum, o andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se aoauditório para uma reunião.
Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozestagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz defalsete grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantesno corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon numtom que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouviruma polca cantada em francês - Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês eas pessoas gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da partemais baixa de Lisbon Street.
Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastantedesorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante damãe, embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil éum tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborreceremtanto por estarem morrendo.
A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado deSonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavamde ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "MisterRogers", uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar.
Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco quilômetrosentre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era possível estarbastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas cervejas.
Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para voltar eapanhá-las - e também beber mais meia cerveja, continuando alto.
Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era omelhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamentolateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o arfrio da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospitalassemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botãoda campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário,a alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar.
A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o quesobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meiadúzia.
ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendodepressa, agora, como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela lutana cama, sem se mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algose mexe lá dentro. Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante amercurocromo e um curativo abaixo da orelha esquerda, onde algum médicocantarolante enfiou a agulha de rádio e explodiu 60% de seu controle motor juntamentecom o centro de dor. Seu olhar o acompanha como os olhos de um Jesus Cristoestereotipado.
- Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez estejamelhor amanhã.
- Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas? Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V elevadosob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não hápaciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minhamãe fica para sempre. Cristo! - Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca antesestive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é decausar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo? Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as parabaixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maioresdificuldades, embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimaslhe escorrem dos olhos para as orelhas.
- Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente.
Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto.
- Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha.
Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro. Umhomem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor.
Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de si.
Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus lábiosse fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu numfilme de viagens. O rosto está magro, descarnado.
A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de umaépoca em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se mudadopara o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida.
Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a cega.
Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e senil,usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora servidono café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos EstadosUnidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntasnaquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós játivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante ocafé da manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãeestivera lavando as fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antigamáquina de lavar roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e aprimeira pancada da fralda molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estavatomando, atirando-o através da mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, semmachucar, mas fazendo-o calar-se de susto e parar de reclamar. E aquela velhaencarquilhada que agora jazia sobre a cama naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo: Cale essa boca tagarela, a única coisaque você tem de grande é a língua e trate de mantê-la quieta até que o resto de vocêfique do mesmo tamanho - e cada palavra grifada era acompanhada de uma pancadacom a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele tivesse a fazer simplesmentese evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para conversa fiada. Naquele dia epara sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão perfeito para fixar aimpressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema, de acordo coma devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda molhada daavó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o espertinho.
Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar aspílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro.
- Se não for incômodo para você - responde ela. - Depois, é melhor você ir. Talvez euesteja melhor amanhã.
Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o acende.
Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela, quetira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; afumaça lhe escapa pelos lábios.
- Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim.
Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados.
- Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir.
Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar comaquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo.
Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de"homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como sefosse previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a umgrau especial de humanidade. Mas.
- Não creio que ela dure muito mais - diz ele ao irmão mais tarde, naquela mesma noite.
O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma ouduas vezes por semana.
Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso,roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquantofala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho.
Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímaxsublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha.
- Claro que interessa! - explode ele, pensando nas pemas dela sob o lençol brancoamarrotado.
Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá emcírculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: elaestá morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital comuma etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E elaterá que lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barbaruiva alourada. Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médicoo conduziu delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar.
- Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase inevitável.
Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar,razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas.
O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nascedesde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny selembra de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o opostode Swinbume, sob todos os aspectos.
- Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno.
- Vai ficar inválida pelo resto da vida? - Sim, creio que é uma suposição razoável.
Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosseseguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiraçãopela mera verdade? - É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está bloqueandoum dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o segundo, eladormirá.
- Sim - diz o médico, mas com um pouco mais de cautela.
"Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos elegistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora nãotivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina internaaté a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, deboca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada paradentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido naprateleira da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Elecolocou um espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e,quando o espelho não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomatemurcho, chamou a mãe. Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado.
- Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras.
O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas velhascaricaturas de psiquiatras.
- Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo é tãoimportante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos ehoras. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses.
Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É como oleve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um técnico.
Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito detempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa.
- O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela? Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não estáalimentando "falsas esperanças".
- Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão. Écomo se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar.
- Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que falarnisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Nãoquero ser processado sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido.
Não tenho causas a defender.
Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta.
Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas comos dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Devefazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevinanda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio.
Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para outrolugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a estaaltura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça.
Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle, comouma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Osdias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptorda campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentarsuficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre".
De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão láembaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Elaevacua na cama e urina na cama - e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dossetenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpoestão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um bonecode criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometerliomicídio9 Ele sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio - o matricídio -, como seele fosse um feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científicaescritos por Ray Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou.
De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela, umbebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando ummédico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, ocâncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho,sombrio irmão gémeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmolugar. Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta edesajeitada? Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela guardaos comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital,juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já nãotêm serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela gargantaabaixo e morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa oscomprimidos de aspirina até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada.
Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem gramasde aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso diminuiutrinta e três por cento em cinco meses.
Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que talveztenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverámotivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosserealmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas eele poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que.
- Você está com melhor aspecto esta noite.
- Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite.
- Vamos ver você mexer a mão direita.
Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seusolhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta: - Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco d'água,Johnny? Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível.
- É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho.
Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez emquando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhandopelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mãodela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio? Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão serecuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho.
Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair sobre olençol. Ela reclama: - Mas não tenho sensação nenhuma na mão.
Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao chegarao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é paranóicacom relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros artistas nofurto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube atravésde uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que umamulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia numsapato. Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certavez, lhe disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabeem parte à combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem abenzedrina que ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidadesdos corredores, perto das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos esoporíferos. E a morte, talvez - a morte misericordiosa como um doce cobertor negro.
As maravilhas da ciência moderna.
Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a.
- Pode pegar alguma das coisas que estão aqui? A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa. Mergulha.
Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude: Mas ela vira o rosto para o outro lado.
- O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de comidacom estas mãos.
Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na testadele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite.
E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem.
- Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny? É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além damedicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seusamigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": aimunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoamorre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe.
Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para asletras grandes no rótulo.
- Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou.
Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente: Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em queesteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quandoele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira - e ele só conseguiu exibiraquele sorriso tolo.
- Está bem. Não permita que percebam.
Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo. Seráela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Elenão sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem.
Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe queela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo arespeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dorde artrite.
Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme, chacalhandoas pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de verificarcomo está passando a "garota da cortotomia".
A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossemperfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou decelebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barcopara batizá-lo.
- Lá vamos nós - diz ele em voz perfeitamente natural.
E coloca a primeira pílula na boca da mãe.
Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de gelatina.
Então, faz uma careta.
Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão pensativa.
Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou amarela.
Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria - Quer ver se minhas pernas estão juntas? Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão. Eladiz: - Acho que vou dormir um pouco, agora.
- Você sempre foi um bom filho, Johnny.
Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico emcima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu atrouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o quedesejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário.
Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para fora,examinando-a.
Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos sãogrossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, masnão se abrem.
Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior.
Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para perto damãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na camisa.
Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao vidro.
Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás.
Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela. Enquantoespera, assiste à televisão e bebe muita água.

Source: http://www.edcm.net/blog/media/users/domi/king_mulhernoquarto.pdf

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